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Palavras para desatar nós

Os textos de fazer pensar são alimentos para a inteligência. É preciso lê-los como quem come: devagar, ruminando, para que a inteligência tenha tempo de mastigá-los e digerí-los.

 

Quando isso ocorre, acontece com eles o que acontece com a comida: a comida é assimilada , passa a fazer parte do nosso corpo. Se a comida não for assimilada, ela é vomitada. O texto também.

 

Esquecer é o jeito que o corpo tem de vomitar... Textos de fazer sentir são alimento para a alma. Eles trazem alegria! E quando a gente sente alegria está experimentando aquilo para que fomos criados.

                               

                              Alves,Rubens

   Palavras para desatar nós, Campinas,

SP: Papirus.2011 pags. 11e 12.

Rubem Alves, no seu livro "Palavras Para desatar nós", nos brinda com um ensinamento que segundo ele, aprendera com Santo Agostinho. Disse que o nosso corpo carrega duas caixas.

 

Na  mão direita, ele carrega uma caixa de ferra-

mentas. Ferramenta é qualquer objeto que sirva para fazer alguma coisa: um martelo, um lápis, uma agulha, um fósforo, uma panela,

uma fórmula de remédio, uma receita de cozinha.

 

Todas as ferramentas  são  invenções da inteli-

gência. Tudo o que se encontra na caixa de ferramentas é útil, meio para se viver. As ferramentas nos dão poder. Os membros do nosso corpo, pernas, braços, mãos, olhos, coração, são todos ferramentas.

 

A arte de viver exige que carreguemos as duas 
caixas: a que nos dá meios para viver e a que nos dá razões para viver.

 

Na mão esquerda, o corpo carrega uma caixa de brinquedos. Brinquedos são coisas inúteis; não nos dão poder. Eles nos dão alegria: dançar, cantar, jogar futebol, contar pia-

das, tocar flautas, ler um poema...

 

Se sua caixa de ferramentas estiver cheia, mas a caixa de brinquedos estiver vazia, você será muito forte mas não terá alegria.

 

Ele continua,dizendo que no livro"Palavras para desatarnós" encontraremos textos da caixa de 

brinquedos, que, nos trazem alegria.

 

 

 

GRAMÁTICA, VIDA E FLEXÕES 

 

Se repararmos bem, a vida humana e a gramática fazem paralelo em inúmeras situações. Na vida, há pessoas que agem sempre em prol da comunidade. Por isso, nas suas tomadas de decisão, levam sempre em consideração o respeito ao próximo, relativizando suas ideias, aparando arestas, cedendo e revendo seus conceitos, visando sempre chegar a um denominador comum com seus pares. Em contrapartida, há os ensimesmados, os que veem a vida de forma unilateral, absolutos nas ideias, porque – como diz Caetano – “Narciso acha feio o que não é espelho”.

 

Com a gramática não é diferente. Vejamos, por exemplo, o caso da flexão nominal em que substantivos e adjetivos são capazes de cederem, modificando-se para concordarem entre si em gênero e número, e os casos de derivações em que os nomes se modificam apenas para se destacarem dos outros. Em “o povo sábio unido jamais será vencido”, há concordância entre o substantivo “povo” e seus pares “sábio”, “unido” e “vencido”, mas em “o povo sapientíssimo unido jamais será vencido”, o grau superlativo absoluto sintético “sapientíssimo” difere dos outros elementos para atribuir uma qualidade elevada ao substantivo “povo”.

 

O interessante, nesse paralelo, é perceber quão descartável é tudo aquilo que vive isolado da sua comunidade. Quem se isola e vive olhando para o próprio umbigo não faz falta a ninguém, da mesma forma que o grau atribuído a uma classe gramatical para singularizá-la também é prescindível. É possível conviver pacificamente com todos os gêneros sociais em qualquer número, mas só até o momento em que uma das partes não se exalta diante da outra. A harmonia entre os termos de uma frase se faz justamente porque há nesses termos a capacidade de cederem para concordarem. Em “ o povo unido jamais será vencido” podemos perceber a ausência do morfema “s”, que só entrará em cena se o substantivo e todos os seus parceiros forem para o plural. Já em “sapientíssimo...”, o adjetivo “sapiente” agrega a si o sufixo “-íssimo”, ou seja, um substantivo ou um adjetivo não cedem para se graduarem, ao contrário, acrescentam para se graduarem e se graduam para se destacarem. Por isso, a única forma de uma palavra se graduar é não concordando com as outras, e só há concordância onde se é capaz de ceder. Flexão é solidariedade, derivação é soledade. Ser flexível é viver em sociedade e perpetuar a vida, ser ensimesmado é viver ilhado em uma autofagia finita.

 

Mas, se na gramática não há concordância do número e do gênero com o grau, na sociedade vislumbro uma possibilidade. É possível alguém ser graduado e viver em concordância com os outros gêneros sociais. Para isso, é preciso flexibilizar-se, abster-se dos superlativos que o distanciam do homem comum; dessufixar-se e desinenciar-se para relativizar as regras e horizontalizá-las; ter envergadura suficiente para mirar com bons olhos o que tem a seus pés. Quem sabe assim possamos realizar, na vida, um feito impossível no âmbito gramatical, que é concordarmos em gênero, número e grau, possibilitando a frase “O povívissimo, sapientíssimo unidíssimo, jamaisíssimo será vencidíssimo”.

 

 Alberto Lopes

 

 

Q VC DISSE? 

 

Depois de muita relutância, decidi criar uma identidade no tal facebook. Não aguentava mais ouvir e não entender os meus alunos dizendo que mandariam o trabalho via “face”, perguntando se eu tinha visto a página tal, o comentário de não sei quem... E lá fui eu criar um perfil, como se não tivesse mais nada para fazer (naquele dia, eu realmente não tinha).

 

Minha primeira interação foi com a Carol, uma aluna que mandou a seguinte mensagem: “Oi, prof! Td blz?” Minha resposta foi outra pergunta: “Oi?” Do que ela estava falando? “Prof.” eu até entendi... Mas, o que era “Td” e “blz”? Carol só disse:”OMG! rsrs”. Tudo bem, amanhã vejo isso.

 

O assunto do dia seguinte era: Siglas e Abreviaturas. Comecei a aula explicando a importância que elas têm na comunicação escrita e também na falada, por conferir economia de letras ao enunciado e facilitar a comunicação entre diferentes línguas. Dei os exemplos clássicos como ONU, já que todos conhecem. Nem todos conheciam. Carol foi a primeira a perguntar o que era aquilo. Patrícia (Paty, como gostava de ser chamada) logo disse que também nunca havia escutado isso. Como assim? Algo tão importante como a ONU não era conhecido? Segui a aula falando das abreviaturas. Dei outros exemplos, clássicos também, como “masc.”, “fem.”, “admin.”... Só o último Paty conhecia. Falou que aparecia no “face”. Ah! O “face”! Lembrei do que Carol falou ontem e não consegui me segurar, fui no automático: “Carol, o que foi aquilo que você me disse ontem?”

 

Todos riram. Não achei graça. Acho que ela já tinha espalhado a notícia. Mesmo assim, não via motivo para o riso. Jorge, que se mostrava o mais compreensivo entre os colegas, falou: “É a economia, professora!” “Hã?” “É que, quando falamos pelo “chat”, também usamos siglas e abreviaturas para o texto não ficar muito grande. É comum. A professora não sabia porque fugia da internet. Agora, já sabe. Viu? Também podemos ensinar algo!” E deu aquele sorriso maroto.

 

Quando cheguei a minha casa, abri o facebook. Vi uma mensagem do Jorge: “É q qnd falamos pelo chat, tbm usamos siglas e abrev. p/ o texto ñ ficar mto grd. É comum. A prof ñ sabia pq fugia da net. Agr, já sabe. Viu? Tbm podemos ensinar algo! rsrsrsrsrs”

 

A lição que tirei disso? De que adianta teoria se não a usamos na prática cotidiana?

 

Fonte: Instituto de Letras, UERJ, 2013

(por Pâmela de Paula da Silva)

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Também nos estudos da Língua“Viver é etcétera”...

 

A fase de transição das reformas na nossa ortografia, a fim de ficar paralela com o calendário adotado em Portugal, foi prorrogada até o final de 2015. Essas mudanças, porém, já estão de tal modo consolidadas em nosso País que esta Morfologia: estudos lexicais em perspectiva sincrônica precisa retomar seu trajeto e se atualizar. A assinatura do Decreto que promulgou o Acordo Ortográfico resultou na necessidade de que modificássemos este livro em relação às três edições anteriores. A mais importante dessas mudanças é a que decorre das determinações do Acordo quanto ao emprego (e ao não emprego) do hífen. Assim, revimos minuciosamente todas as passagens em que os assuntos “composição de palavras” e “derivação prefixal” estão envolvidos, mas também foi preciso “rearrumar” muitas afirmações que se referiam a outros aspectos teóricos.

O texto do Acordo interveio na descrição gramatical e gerou situações embaraçosas para o pesquisador, professor, estudioso – especialmente nos assuntos de morfologia. Por exemplo, não é mais permitido o uso de hífen depois dos elementos “não” e “quase”. Antes, se escrevia “não-agressão”, “não-eu” ou “quase-contrato”, “quase-irmão”. Agora, essas palavras se escrevem sem hífen. Um pequeno problema seria identificar, após a mudança, qual a classe gramatical de “não” e “quase” nesses sintagmas (advérbios? palavras denotativas?). Problema maior mesmo, porém, é explicar que “não” e “quase”, embora separados das suas palavras parceiras por espaço em branco, continuam sendo chamados de “prefixos” (sic) nas páginas de nossas leis ortográficas... Criou-se então a estranha figura do prefixo que não está agregado ao radical (in+feliz = infeliz) nem está separado dele por hífen (pré+barroco = pré-barroco). Existe (?) agora o prefixo que se separa do radical por um espaço em branco (não + cooperação = não cooperação).

Além disso, há casos que apresentam a identificação, descrição e classificação de morfemas pela tradição praticada em Portugal, colocando em xeque o que já se consolidou em nossas terras. Pelo texto do Acordo, lê-se que prefixos são elementos que atuam na composição – quando para nós, diferentemente, prefixação é um caso de derivação. São situações que precisam ser esclarecidas, como também as que envolvem antigos substantivos compostos (pé-de-moleque, mula-sem-cabeça), que assumem o status de locuções substantivas, expressões idiomáticas (pé de moleque, mula sem cabeça). Perdem, portanto, a condição de “palavra”, já que o desaparecimento dos hifens tirou delas a feição de unidade lexical.

Outro dado relevante sobre esta edição se refere à atualização das informações bibliográficas, à inclusão da questão de morfologia proposta no Enade 2011 e à inserção de um Índice por Assunto – lacuna resolvida com a competente ajuda do colega André Conforte.

*

O leitor desta quarta edição deve então considerá-lo sob essa perspectiva.

Em resumo: novas explicações, novos comentários e novos exercícios, pois também nos estudos da língua “Viver é etcétera”...

 

Postado por Claudio Cezar Henriques às 02:39 Nenhum comentário:

 

GRAMÁTICA+LITERATURA

 

Mais duas crônicas linguísticas para os leitores do blogue. São textos produzidos por duas alunas do sétimo período de Língua Portuguesa da UERJ (turma de 2012-2 do Instituto de Letras). O tema era GRAMÁTICA+LITERATURA, assunto de nosso curso.

 

ANDORINHA (por Isabela Fornazier)

 

Nunca fui da poesia, dos poemas. Muito menos do estudo deles. Mas, ao entrar numa faculdade de Letras, estudá-los e lê-los tornam-se obrigação. Eis que entrei. Passei a sê-lo menos ainda.

 

Os primeiros contatos não foram muito bons, como era de se esperar. Eles repeliam-me, o que eu podia fazer? Passaram desordenados Gonçalves, Casimiros, Mários, Adélias, Castros – Cruzes! Nem sequer Machado, de cuja prosa sempre fui grande admiradora, deu-me jeito. Poesia, para mim, apenas dissolvida na prosa. Chegou então o Manuel.

 

Andorinha, andorinha, minha cantiga não é mais triste, não! No momento certo, o Manuel chegou-me com a Andorinha. Poema breve: duas estrofes, dois versos em cada uma. Na primeira estrofe, a andorinha lá fora e seu dia à toa, à toa. Na segunda, o eu lírico lá dentro e sua vida à toa, à toa. Separação de estrofes e de melancolias. Enquanto lia repetidas vezes, eu me lembrava do pensamento clichê que me impulsionara, felizmente, para tantas decisões na vida. Foi como se o Manuel, com o perdão pelo infame trocadilho, tivesse hasteado uma enorme bandeira na minha memória, que tendia a falhar, dizendo: cante, andorinha.

 

No encontro com a tal ave, não houve modo de não a relacionar também à vida de seu autor. O vocativo criado possivelmente serviu-lhe de reflexo ao que o perseguiu ao longo de sua vida longa: a iminência da morte desde os dezoito. E numa outra época, lugar e situação, estava eu, lendo, lendo, lendo, lidando não mais com a iminência da poesia; ela já havia me alcançado.

 

A partir dos quatro versos-bandeira, deixei que o resto do livro passasse todas as suas páginas amareladas diversas vezes pelos meus olhos e mãos. E foi impossível não lhes ser: não satisfeito em passá-las, entranhou-as em mim. Ainda eu não era de todos os poemas da literatura (quem os é?), mas ali aparecia o que parecia a primeira faísca de uma talvez futura fogueira.

 

Se uma andorinha não faz verão no lugar-comum, naquele momento que vivi ela o fez. A andorinha do Manuel, vazia, só, de cantiga triste, ironizada melancolicamente pela cantiga do eu lírico, carregava em si mais um dos dias manuelinos. Para mim, essa mesma andorinha carregou o meu vazio e me trouxe a clareza de volta. Por pura coincidência, era verão lá fora. Agora, era também aqui dentro.

 

Nunca fui da poesia, dos poemas. Muito menos do estudo deles. Mas, ao entrar numa faculdade de Letras, estudá-los e lê-los tornam-se obrigação. Eis que entrei. Passei a ser andorinha feliz.

 

 

 

NO MEIO DO CAMINHO 

 

Um dia qualquer. Uma ida qualquer ao trabalho. Sete horas da manhã. O ônibus lotado. Um trânsito infernal. Parece que houve um acidente e há um carro no meio da pista. Ao organizar esse pensamento, lembro imediatamente do poema do Carlos Drummond de Andrade, aquele que fala sobre a pedra no meio do caminho. Entediada por causa do calor e dos carros que não andam, fico com estes versos na cabeça: “tinha uma pedra no meio do caminho” / “no meio do caminho tinha uma pedra”.

 

Por que será que Drummond repete tantas vezes as palavras “pedra” e “caminho”? Apesar de o poema ter apenas dez versos, “pedra” é repetida sete vezes e “caminho” é repetida seis vezes... Afinal, o que será que essa observação do poeta significa? Sei que há estudos que explicam que a pedra, na verdade, é uma metáfora dos problemas da vida... E se for, será que o poema fala que os problemas nunca acabam, já que, na própria estrutura textual, a pedra bloqueia o caminho antes e depois nos versos? Será que essa sequência “tinha uma pedra no meio do caminho tinha uma pedra” cria obstáculos que se desencadeiam sem fim? Além disso, se a pedra representar mesmo os problemas da vida, será que esse trânsito é a pedra do meu caminho?

 

Tenho meu pensamento interrompido por um barulho de buzina e percebo que o ônibus se aproximou do local do acidente. Na verdade, também tinha um caminhão envolvido na batida: pessoas recebendo ajuda médica, vidros quebrados no chão e muitos espectadores observando de longe (o que causava todo o transtorno, por sinal). Paro para pensar e me questiono de novo: será que os veículos são realmente as pedras no meio do caminho ou sou eu o obstáculo que impede que a ajuda chegue mais rapidamente para os feridos? Concluo que, talvez, "ter problemas" seja uma questão de ponto de vista, já que eu me preocupava apenas em chegar ao trabalho enquanto pessoas tentavam sobreviver a uma tragédia. No final das contas, me sinto mal por ter me preocupado com uma pedrinha enquanto pessoas a poucos metros de mim enfrentavam um pedregulho.

 

Novamente meu raciocínio é interrompido, agora por um barulho de ambulância. Escuto um passageiro perguntando se alguém teve ferimentos graves: para o alívio de todos, as vítimas estavam bem. Após passar por essa experiência, vou para o trabalho refletindo que, assim como o poeta, acho que nunca me esquecerei desse acontecimento na vida de minhas retinas tão estressadas por causa da rotina. Talvez a grande lição de Drummond para nós não foi ter colocado um obstáculo no caminho e, sim, ter colocado a pedra no meio dele, para que pensemos sempre sobre como retirá-la e continuar seguindo a nossa estrada até o fim.

 

Fonte: Instituto de Letras, UERJ, 2012

Postado por Claudio Cezar Henriques às 13:52 5 comentários:

 

 

 

 

ELA ME IRRITA, MAS EU GOSTO

 

 

Não! Respondi sem titubear quando a proposta me foi feita. Como eu poderia aceitar o convite para ser professora de língua portuguesa de um pré-vestibular comunitário, se ainda não me sentia preparada para solucionar as questões problemáticas desse emaranhado de normas que formam a chamada língua culta – ou padrão, para quem tem um maior apreço pelas variações linguísticas?

 

Para não perder a oportunidade de ganhar o título de professora, peguei a turma de redação, e há três anos me mantenho frente a ela. Ledo engano para quem achou que saber a necessidade de uma introdução, três argumentos e uma conclusão seria o suficiente para dar aulas de produção textual. Ao longo desses anos de “casa”, descobri que, se eu não quisesse me deparar com dúvidas complexas acerca da língua, deveria ser professora de matemática.

 

Ainda este ano, tive que tirar do bolso a fatídica frase – vou pesquisar e na aula que vem eu te digo – para responder por que malvado é com l, logo após explicar a diferença entre mau e mal. Muitas “aulas que vem” se passaram e eu ainda não descobri. Eventualmente, a morfologia se mostra um problema. Contudo, o que realmente me confunde é a sintaxe, essa bondosa malvada coordenadora de palavras e orações, que assusta desde os pré - vestibulandos até os professores da língua.

 

Sempre escutei que “nunca se separa sujeito de predicado numa frase escrita na ordem direta” e nunca não permite exceções. E lá estava eu, de frente para um livro que deveria solucionar minhas dúvidas, tentando compreender as regras de subordinação de orações, quando me deparo com um “Quem tudo quer, nada tem”. Opa! Pode isso, Arnaldo? O que aquela virgulazinha está fazendo ali entre o sujeito e o predicado? No canto superior esquerdo do livro está a minha resposta escrita a lápis: a vírgula é por estilo e é permitida. Quando eu escrevi isso? Quando eu aceitei essa explicação sem fazer um escarcéu? A regra é clara. Nunca é nunca. A coordenadora das relações oracionais não deveria permitir isso, mas quando a chefe da empresa, a senhorita Estilística – solteira, nunca se vincula – diz que pode; então, pode.

 

Eu defendia a ideia de que “toda a regra tem uma exceção”; só que, pelo visto, não ando em consonância com o que costumava afirmar. Não gosto de abrir concessões em alguns casos. Isso me irrita. O verbo ser serve para designar estado, condição, é o famoso verbo de ligação: liga o sujeito ao seu predicativo. Entretanto – tinha que ter um porém –, quando for usado para indicar tempo ou fenômenos meteorológicos, fará parte de uma oração sem sujeito. Em “são duas horas”, por exemplo, são deveria ser verbo de ligação, mas não o é, afinal, está ligando o que, se não há sujeito? E duas horas? Não sendo predicativo, nem objeto direto ou indireto, é o quê? Para finalizar, a parte mais interessante dessa pequena estrutura oracional é que o verbo concorda com o sintagma duas horas, o que quer que este seja. Dentre todos os verbos impessoais que definem tempo, somente o verbo ser varia de acordo com a expressão numérica. Até Hamlet se questionava sobre isso: “Ser ou não ser, eis a questão”.

 

Expostas algumas das minhas picuinhas com a sintaxe da língua portuguesa, devo confessar que paradoxalmente eu gosto disso tudo. O que me irrita me atrai e quem desdenha quer comprar. O importante é saber que sempre terei uma “aula que vem” e gramáticas não irão me faltar. Dessa vez, quando vier um convite para dar aulas de português, a resposta será sonora. Sim!!!

 

Fonte: Instituto de Letras, UERJ, 2012.

Claudio Cezar Henriques às 04:30 Nenhum comentário:

 

 

 

 

LOUCOS SOIS, ADVERBIAIS

 

 

Se ter um prazo a cumprir torna qualquer tarefa escrita árdua pelo peso de seu compromisso, um problema maior do que este está justamente em não saber exatamente sobre o que se quer escrever. Tal indecisão faz imaginar-me, então, na posição do colunista morfológico cujas obrigações são de expor, semana após semana, curiosidades, lições, estudos, ensinamentos e experiências gramaticais, faça chuva ou sol. Não tenho dúvidas de que em tal posição meu imediatismo me faria ter como principal alternativa, sempre, a minha sinceridade.

 

E vos digo: a morfologia é uma ciência extensa – e isso não é novidade para ninguém, eu sei. Mas, se na teoria parece simples escolher um tema dentro dela, sendo tantos, na prática nem sempre o é. E então, por circunstância de tal dúvida, acabei ficando debaixo de uma chuva de papéis com temas morfológicos... Acabei pegando alguns antes que eles tocassem o piso. Foi difícil. Mais simples seria esperá-los encostar o chão; porém, não tive tempo para isso, o que fez com que os temas escritos nos papéis pairassem no texto.

 

O primeiro papel que catei falava dos pronomes: palavras substitutas, suplentes, praticamente dublês dos substantivos: astros que não banalizam sua imagem e que se usam dos pronomes, coitados, para que façam o trabalho de agir por eles. Pronomes que podem ser até mesmo caracterizados como a morfologização da malandragem, como ocorreu no famoso caso do aluno, que, tentando se omitir ao professor, que havia lhe pedido para que dissesse dois pronomes, respondeu: “Quem? Eu?”. Deus salve tal classe tão operária das palavras.

 

O segundo papel falava sobre verbos deficientes, ou melhor, especiais. Verbos defeituosos, digo, defectivos, que não são conjugados em todos os tempos e pessoas. Verbos que são por vezes proibitivos - e até opressores! - e que impedem, por exemplo, que minha amada irmã, linda e saudável criança em desenvolvimento, colora um belo desenho. Coitada, desenha, mas não pode colori-los.

 

O terceiro e último papel falava sobre verbos irregulares: verbos mutantes, que foram mutilados e modificados e aglutinados e misturados – e tudo a que se tem direito – de acordo com o tempo e com as mudanças de nossa língua. Digo isso por crer ser bom saber das agruras pelas quais essas palavras passaram para entender que não foi por acaso que Jardel, ex-atacante do Grêmio, se confundiu tanto ao explicar como havia feito um de seus gols, dizendo que “chutou a bola e ela foi fondo, foi fondo, e iu!”.

 

E assim é não só a morfologia como toda a gramática: viva. Uma volátil chuva volátil de morfológicos papéis picados que nem sempre chegam ao chão e estagnam-se; que às vezes não se cansam de voar por aí se misturando e se modificando com tudo que passa pelo ar.

 

 Allex Machado, cronista convidado - aluno do quarto período do Instituto de Letras da UERJ

 

 

 

 

 

 

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